quarta-feira, 27 de abril de 2011

E, com as horas de sono, as recordações, a leitura de minha ocorrência e alternância da luz e da sombra, o tempo passou. Tinha lido que na prisão se acaba perdendo a noção do tempo. Mas, para mim, isto não fazia sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser, ao mesmo tempo,curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros. E nisso perdiam o nome. As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam um sentido para mim.

Quando, um dia, o guarda me disse que eu estava lá há cinco meses, acreditei, mas não compreendí. Para mim, era sempre o mesmo dia, que se desenrolava na minha cela, e era sempre a mesma tarefa que eu perseguia sem cessar. Nesse dia, depois de o guarda ter saído, olhei-me na minha bacia de ferro. Pareceu-me que minha imagem ficava séria, mesmo quando tentava sorrir para ela. Agitei-a diante de mim. Sorri, e ela conservou o mesmo ar severo e triste. O dia acabava e era a hora de que não quero falar, a hora sem nome, em que os ruídos da noite subiam de todos os andares da prisão, num cortejo de silêncio. Aproximei-me da janela e, à última luz, contemplei uma vez mais a minha imagem. Continuava séria, e que há de espantoso nisso, se nesse instante eu também estava sério. Mas ao mesmo tempo, e pela primeira vez nos últimos meses, ouvi distintamente o som. Reconheci-a como a que ressoava há longos dias aos meus ouvidos, e compreendí que, durante este tempo, falara sozinho. Lembrei-me, então, do que dizia a enfermeira no enterro de mamãe. Não, não havia saída, e ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões."

CAMUS, Albert. O estrangeiro.

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Camus filosofa em seus escritos sobre o conceito do absurdo, especialmente no início da narração de O estrangeiro. Ele narra a morte de sua mãe e seu retorno à terra natal. Uma perspectiva isenta de sentimentos é presente na narrativa. A noção contrária à arte como manifestação do sentimento humano é destaque na obra. Um tédio avassalador compõe os dias do narrador na prisão. Tédio, apatia e inexistência de emoções são traços marcantes: "Tinha lido que na prisão se acaba perdendo a noção do tempo.Mas, para mim, isso não fazia sentido." Uma vida vazia dominada por uma crise existencial do presente vivido, em que a vida como essência seja simplesmente viver.
Camus aponta para o simplismo que às vezes pode parecer nossas vidas,o que nos leva ao conceito de absurdo. A narrativa é um desmascaramento que esmiuça os dramas humanos a partir do conflito pessoal do narrador levando-o à ordinariedade e finitude humana diante da morte, sem sentimentos ou racionalidade nas relações vividas.

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